DECIMAR BIAGINI

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Advogado e Poeta Cruzaltense

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sexta-feira, 24 de outubro de 2025

A Graça dos Dias Iguais

A graça dos dias iguais

Hoje o sol veio cedo, e o calor, generoso, lembrou-me que cada amanhecer é um milagre repetido. Acordei com a voz doce — e firme — da minha filha pedindo a mamadeira, e logo veio o sermão: “só a mamãe sabe arrumar o meu cabelo”. Sorri. O cabelo é um emaranhado de fios, como a vida — e talvez ela já saiba disso, inconscientemente.

 

Enquanto o café gotejava na cafeteira programada por Fernanda, pensei em Aristóteles, que dizia que a felicidade reside nas pequenas ações bem feitas. A luta interna entre o pão puro e a mortadela sem toucinho foi quase um tratado sobre o livre-arbítrio: escolhas simples, mas que desenham o tom do dia.

 

Olho pela janela e vejo o mercado logo à frente. Uma bênção moderna — ter os legumes a poucos passos e o tempo suficiente para escolher cada um como quem escolhe ideias novas. Pico a alcatra, jogo os temperos, preparo o picadinho que logo se tornará massa, perfume e partilha. “Cozinhar é um ato de amor”, dizia Emmanuel — e eu penso que talvez seja também um modo de orar com as mãos.

 

Com sorte termino antes das onze, e o chimarrão me espera como um velho mestre. É nele que repouso o espírito e observo o mundo digital: comentários no Recanto das Letras, visualizações de um vídeo-poema, ou a nova música saída do Suno — fragmentos de mim navegando pela vastidão invisível da rede.

 

Envio, como de costume, uns cinco PDFs de jornais a amigos queridos. Não leio todos, confesso que tenho alguns que guardo só para mim mastigar mais tarde, quando o povo já foi dormir, mas o gesto de enviar alguns periódicos e jornais inclusive ao grupo que criei aos amigos de infância mais silenciosos que um memorial pós-apocalíptico, me reconcilia com a ideia de estar conectado. Somos fios de uma mesma trama, e cada partilha é um pequeno sol.

 

Gosto de abraçar um butiazeiro que fica no térreo do prédio, estes dias perguntei se meu vizinho nao estava assustado com minha atitude, até brinquei que herdei esta mania depois de ir em Saquarema conhecer o namorado da Janis Joplin, o Sergei, ele quase chorava de gargalhar, falou que depois dos quarenta agradece por ter vizinhos como eu e que sabia que eu fazia isto para jogar energias em excesso de volta à mãe terra.

Gosto de olhar o roseiral do condomínio plantado por dona Neusa, uma longeva e exemplar senhora que mesmo aos 82 anos mantém disciplina inspiradora com as flores e hortaliças. Falei para ela sobre confiar em Deus no processo da semeadura de qualquer situação onde nao se cava todo dia para ver se a semente vingou. As rosas amarelas ao lado das vermelhas são verdadeiro mistério antigo.

Hoje tive a chance de enviar um vídeo-poema meu para minha madrinha em Praia Grande que está num PA atravessando uma situação constrangedora, ainda consegui falar com minha prima Paola que há tempo não conseguia conectar, ela estava recém fazendo sua bebê Giovana dormir, então fiquei matutando que todos estão fazendo suas rotinas e enfrentando da melhor forma possível, me deu orgulho saber que minha prima que muito coloquei dormir estava hoje dando conta de uma vidinha tão bela na tão sonhada maternidade. Escolhi muito bem ela para seguir o legado de minha madrinha sendo madrinha de meu hoje adolescente Arthur.

Antes de levar Valentina à escolinha, Fernanda consagrou o penteado do Ballet com aquela redinha ímpar, que sopra no seu ouvido um assustador: sua filha cresceu mais ainda esta semana, olha como ela está linda e mocinha!

Os dias têm sido iguais , e isso, descobri, é uma forma de bênção. Vivemos num país sem guerra; o pão ainda está sobre a mesa; a criança ainda ri da minha “massaroca” capilar; e o amor continua acendendo o fogão. Tenho tido a sorte de neste mês acolher a visita de minha sogra, então posso descer para ir ao mercado ou farmácia sabendo que Valentina está bem com pessoa boa e amorosa. Quando a Musa chega do trabalho ao meio dia a mesa já está posta com aquele chimarrão exemplar, Valentina puxa a oração e as lágrimas de gratidão costumam cair após os elogios da turma dizendo toda vez que aquele prato feito por mim é o melhor de sempre.

 

Nietzsche dizia que deveríamos viver de modo a querer reviver o mesmo dia por toda a eternidade. Se assim for, que seja este: simples, morno, cheio de gratidão.

 

Porque a rotina, quando vista com olhos de alma, é apenas o Universo respirando dentro da gente.

 

Decimar da Silveira Biagini

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