Foi ali que eu aprendi que livro não é só conteúdo. É cheiro, é toque, é ritual. Era entrar na biblioteca, passar pelas estantes de madeira escura, ouvir o estalar do parquê velho, já desencaixado, o tic-tac do relógio da parede e o sussurro de páginas como quem reza.
Ainda, com sorte, na fila de espera, pegar em primeira mão os periódicos do Asterix e Obelix, Superinteressante e enciclopédias atualizadas.
E, no centro disso tudo, feito guardião de palavras e de mundos, estava meu pai, Décio — professor de História (que, na ditadura, foi também de Educação Artística, OSPB, Moral e Cívica) e Geografia, coordenador da biblioteca, contador de causos e facilitador de saber.
Ele tinha mãos que sabiam localizar qualquer autor sem consultar catálogo — era quase magia. Meus colegas e eu tínhamos quase certeza de que ele era capaz de ler um livro recém-chegado só tocando na capa, pois falava de improviso sobre qualquer assunto. E, como bom comunicador, só parecia conhecer o que dizia depois que o assunto saía da sua boca.
Eu via o respeito dos alunos por ele, mesmo sem que entendessem o que ele dizia. Ele tinha tanta confiança naquilo que falava que a gente se achava das cavernas por não fazer ideia do quanto geopolítica e história eram coisas muito além do nosso bairro. E eu entendia que, ali, entre mapas e narrativas, meu pai não era só educador.
Era iniciado. Um templário do saber.
E eu, pequeno, filho dele, me sentia herdeiro de uma ordem secreta — a dos leitores que buscam sentido.
A biblioteca do Venâncio era minha Jerusalém particular.
Lembro da ficha catalográfica escrita à mão, das letras que tremiam quando alguém puxava a mesa. O cheiro de livro antigo misturado com pó de giz e papel almaço.
Cada leitura era um mergulho sensorial.
E cada vez que eu lia, era como se meu pai dissesse:
“Vai, filho, entende o mundo, mas não perde tua alma.”
Meu imaginário foi sendo construído ali — tijolo por tijolo, livro por livro, mito por mito.
Meus ancestrais diziam que passar conhecimento é como dar água aos cavalos: você desce até a sanga, frouxa a rédea, mas baixar a cabeça e beber é com eles.
Aos 10 anos, fui parar numa escola de datilografia, na esquina democrática. Dona Aurora colocava tampas de garrafa nas teclas para que ninguém olhasse para o teclado. Não podia rebater, e tinha de usar todos os dedos.
Ela ficaria abismada com o fato de eu estar escrevendo esta coluna com um celular e apenas dois dedos — polegar esquerdo e indicador direito.
Hoje, já homem feito, não tenho mais aquele rito.
Não ando mais a cavalo, não visito parentes distantes, não acampo, não ajudo meu pai no mimeógrafo, tampouco uso máquina de escrever — e não vou à biblioteca.
Meus livros vêm em PDF, os arquivos pesam megabytes — não mais memória afetiva.
Leio com o olho cansado de tela, sem ouvir o estalo da lombada abrindo ou sentir o perfume do papel amarelado.
Ninguém mais tira ficha.
Ninguém mais carimba data de devolução.
A leitura ficou mais rápida, mais limpa... e menos sagrada.
Mas sigo lendo.
Leio como quem resiste.
Como quem sente que cada leitura profunda é uma oração contra o apagamento.
E quando leio sobre a ascensão da inteligência artificial, sobre a desigualdade que cresce junto com a nuvem de dados, sobre os empregos que desaparecem na velocidade de um clique, lembro das palavras do meu pai:
“O saber é teu. Ninguém te toma."
E aí, me vem a Cruz Alta de hoje. Cheia de potencial.
Terra tropeira, mística, com raízes fortes o bastante pra sustentar o futuro.
Já pensou se a gente voltasse a valorizar nossa genealogia.
E escrevo isso agora como quem acende uma vela num altar de lembranças.
E deixo aqui meu verso, escrito com tinta da alma e saudade de ficha de biblioteca:
Se o saber hoje flutua na nuvem
E a IA fez Dostoievski parecer abaixo da média
Um dia tive chão de madeira e silêncio
Meu pai me deu exemplo, mapa e enciclopédia
Ancestrais sopraram além tempo
Então aprendi a desacelerar no meu ritmo
Hoje resta PDFs, orações e virtuais rédeas
E pratico a arte de dizer não diante de ledo algoritmo