DECIMAR BIAGINI

DECIMAR BIAGINI
Advogado e Poeta Cruzaltense

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terça-feira, 17 de junho de 2025

Capitania do Saber, memórias da biblioteca

Outro dia, no silêncio digital de um PDF aberto na tela fria do meu celular, me bateu uma saudade funda, quase doída, da biblioteca da minha adolescência — a da minha escola, o velho e querido Colégio Estadual Venâncio Aires.

Foi ali que eu aprendi que livro não é só conteúdo. É cheiro, é toque, é ritual. Era entrar na biblioteca, passar pelas estantes de madeira escura, ouvir o estalar do parquê velho, já desencaixado, o tic-tac do relógio da parede e o sussurro de páginas como quem reza.
Ainda, com sorte, na fila de espera, pegar em primeira mão os periódicos do Asterix e Obelix, Superinteressante e enciclopédias atualizadas.

E, no centro disso tudo, feito guardião de palavras e de mundos, estava meu pai, Décio — professor de História (que, na ditadura, foi também de Educação Artística, OSPB, Moral e Cívica) e Geografia, coordenador da biblioteca, contador de causos e facilitador de saber.
Ele tinha mãos que sabiam localizar qualquer autor sem consultar catálogo — era quase magia. Meus colegas e eu tínhamos quase certeza de que ele era capaz de ler um livro recém-chegado só tocando na capa, pois falava de improviso sobre qualquer assunto. E, como bom comunicador, só parecia conhecer o que dizia depois que o assunto saía da sua boca.

Eu via o respeito dos alunos por ele, mesmo sem que entendessem o que ele dizia. Ele tinha tanta confiança naquilo que falava que a gente se achava das cavernas por não fazer ideia do quanto geopolítica e história eram coisas muito além do nosso bairro. E eu entendia que, ali, entre mapas e narrativas, meu pai não era só educador.
Era iniciado. Um templário do saber.
E eu, pequeno, filho dele, me sentia herdeiro de uma ordem secreta — a dos leitores que buscam sentido.

A biblioteca do Venâncio era minha Jerusalém particular.
Lembro da ficha catalográfica escrita à mão, das letras que tremiam quando alguém puxava a mesa. O cheiro de livro antigo misturado com pó de giz e papel almaço.
Cada leitura era um mergulho sensorial.
E cada vez que eu lia, era como se meu pai dissesse:
“Vai, filho, entende o mundo, mas não perde tua alma.”

Meu imaginário foi sendo construído ali — tijolo por tijolo, livro por livro, mito por mito.

Meus ancestrais diziam que passar conhecimento é como dar água aos cavalos: você desce até a sanga, frouxa a rédea, mas baixar a cabeça e beber é com eles.

Aos 10 anos, fui parar numa escola de datilografia, na esquina democrática. Dona Aurora colocava tampas de garrafa nas teclas para que ninguém olhasse para o teclado. Não podia rebater, e tinha de usar todos os dedos.
Ela ficaria abismada com o fato de eu estar escrevendo esta coluna com um celular e apenas dois dedos — polegar esquerdo e indicador direito.

Hoje, já homem feito, não tenho mais aquele rito.
Não ando mais a cavalo, não visito parentes distantes, não acampo, não ajudo meu pai no mimeógrafo, tampouco uso máquina de escrever — e não vou à biblioteca.
Meus livros vêm em PDF, os arquivos pesam megabytes — não mais memória afetiva.
Leio com o olho cansado de tela, sem ouvir o estalo da lombada abrindo ou sentir o perfume do papel amarelado.
Ninguém mais tira ficha.
Ninguém mais carimba data de devolução.
A leitura ficou mais rápida, mais limpa... e menos sagrada.

Mas sigo lendo.
Leio como quem resiste.
Como quem sente que cada leitura profunda é uma oração contra o apagamento.
E quando leio sobre a ascensão da inteligência artificial, sobre a desigualdade que cresce junto com a nuvem de dados, sobre os empregos que desaparecem na velocidade de um clique, lembro das palavras do meu pai:
“O saber é teu. Ninguém te toma."

E aí, me vem a Cruz Alta de hoje. Cheia de potencial.
Terra tropeira, mística, com raízes fortes o bastante pra sustentar o futuro.
Já pensou se a gente voltasse a valorizar nossa genealogia.

E escrevo isso agora como quem acende uma vela num altar de lembranças.
E deixo aqui meu verso, escrito com tinta da alma e saudade de ficha de biblioteca:

Se o saber hoje flutua na nuvem
E a IA fez Dostoievski parecer abaixo da média
Um dia tive chão de madeira e silêncio
Meu pai me deu exemplo, mapa e enciclopédia
Ancestrais sopraram além tempo
Então aprendi a desacelerar no meu ritmo
Hoje resta PDFs, orações e virtuais rédeas
E pratico a arte de dizer não diante de ledo algoritmo
As mentiras e piadas? Continuo com este vício.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Chimarrão com Erico, Crônica

Chimarrão com Erico Verissimo, crônica para tempos que viraram aplicativos, pelo poeta Decimar
Certa manhã, acordei com uma revelação cósmica: o apito da chaleira parecia a sirene do fim do mundo, ou talvez só mais uma notificação dizendo “seu boleto venceu”. Em Cruz Alta, cidade de Erico Verissimo, onde o vento parece contar histórias e o tempo tem cheiro de madeira molhada, ser poeta ainda é um cargo de utilidade duvidosa, mas de necessidade urgente.
Sim, poeta. Essa espécie em extinção que tenta salvar o mundo com palavras quando todo mundo quer mesmo é salvar arquivos.
Li na Superinteressante que já clonam o Minecraft com IA, que os sapos estão sendo dizimados por fungos apocalípticos e que até a banana foi domesticada geneticamente para não escurecer. Uma banana eterna! Só falta fazerem um chimarrão que nunca esfrie. Isso sim seria revolução.
Mas repare: no meio de tanto algoritmo, onde está a alma? Onde ficou o “tempo e o vento” se só nos resta Wi-Fi e correria?
Erico, se me escutas dos campos de cima da nuvem (a celestial, não a digital), perdoa-me a liberdade poética, mas hoje, ao invés de Ana Terra e Capitão Rodrigo, o que temos são cidades ocas, como bem define a reportagem: prédios vazios no centro e gente espremida na periferia — o mundo virou um SimCity com menos poesia e mais boletos.
Pois o poeta aqui propõe, com a seriedade de um palhaço em horário eleitoral, as seguintes ideias para subversiva felicidade:
1. Transforme seu tédio em galeria de arte, pinte paredes com frases soltas que sua avó dizia. Expanda-se como um muro grafitado de lembranças;
2. Adote um canteiro comunitário e tenha uma palanta com homenagem ancestral. Ou um cogumelo. Dê nome a eles e finja que são influenciadores ecológicos. Poste fotos com a hashtag #NaturezaMeSegue;
3. Reinvente o AirBíblia fazendo provérbios locais de pessoas da sua árvore genealógica - bora entrevistar vovós e vovôs, até aquele tio que você acha muito quieto: ofereça abrigo ao próximo e uma parábola de brinde. A gentrificação treme quando o amor é gratuito;
4. Use IA para gerar bilhetes de desculpa por não responder mensagens no WhatsApp. Mas assine à mão. A caligrafia é a última resistência humana;
5. Faça serenata para o fungo quitrídio. Afinal, todo vilão merece um pouco de empatia antes do capítulo final.
6. Troque de culto por um dia se quiser discutir religião.
E se a vida te der um algoritmo, responda com um aforismo. Se a cidade estiver oca, encha-a com poesia falada. Recite no ponto de ônibus. Faça um sarau na praça. Desafie o silêncio com haicais de elevador.
Erico, tu sabias: viver é meio ficção mesmo. Só nos resta decidir se seremos o narrador entediado, o herói desconfiado ou o louco visionário que atravessa a cidade com um livro na mão e uma flor na outra.
Cruz Alta ainda respira — entre uma nuvem digital e outra — graças aos que ainda olham para o céu e pensam: “parece verso.”
E que venha a próxima notificação: estou pronto, com rima carregada e um chimarrão no coldre.

Tendências juninas

Tendências juninas

Cúpula se fecha
oleoduto em alerta 
armas na balança

Página escura
tremores à vista 
ver-junho aproxima

Mentes elétricas
quintilhão vislumbrado
no horizonte

Carrinho explode
atalhos de cultura
TikTok mostra o mundo

Sobre o viaduto
um mate espera o vento
busco indulto

Quase quarenta e três
vento sul acarinha
veículo da vez

Decimar da Silveira Biagini
Aos 16 de junho 
madrugada de cusco rengo

Qual tema nos poemas mais te atrai?